Álbum - este foi o título que o diário de Maria Firmina dos Reis recebeu ao ser publicado em 1975, por Nascimento Morais Filho em Maria Firmina: fragmentos de uma vida; é composto por fragmentos esparsos que vão de 09 de janeiro de 1853 a 01 de abril de 1903, redigidos, portanto, entre os 30 e 81 anos de idade de Firmina. Editado em trinta páginas, que exibem breves notícias e saltos de quatro anos ou mais, apresenta forma entrecortada, descontínua, mas não parece apresentar páginas perdidas, apenas com a ordem das páginas 159 e 165 trocadas, e uma entrada em 1910, que é visivelmente um erro de impressão (LOBO, 1993; p.230).
É um conjunto de pequenos textos, com teor de diário íntimo, que tratam do tema da tristeza e da separação, com anotações sobre despedidas, mortes, momentos de solidão, desesperança e apatia, em que registros sobre seus laços afetivos e seus estados de espírito são contrabalançados por anotações corriqueiras de pequenos fatos sobre a vida cotidiana. Os vários registros sobre mortes de crianças que adota, sobre o fracasso amoroso, morte de parentes e a partida de entes queridos que viajam de Guimarães, são acompanhados de constantes lamentações, compensadas por um profundo senso de religiosidade e do fatalismo da vontade divina (MUZART, 2000: p.251; LOBO,1993: p.231).
No texto Resumo da minha vida (dividido em três seções), de junho de 1863, a escritora ilumina detalhes importantes para a compreensão de sua própria percepção acerca de sua vida e de seu modo de ver o mundo; nele, ela afirma ter tido “uma espécie de educação freirática”, “encerrada na casa materna” com a “avó”, a “irmã” (Amália Augusta dos Reis), e “uma prima” (Balduína), suas “únicas amigas de infância”, revelando-nos um contexto de isolamento no espaço do lar, profundamente marcado pela presença feminina. A consciência dessa realidade tornava-a melancólica e acanhada, ao mesmo tempo, atribuía um ponto de vista profundamente crítico, relativo às relações sociais vigentes em seu tempo:
“Encerrada na casa materna, eu só conhecia o céu, as estrelas, e as flores, que minha avó cultivava com esmero […] O mundo! Esse espelho impassível, cruel […] desfazer as nossas mais gratas, mais lisonjeiras esperanças!”.
Em Álbum, também encontramos pistas sobre o tipo de literatura que a escritora apreciava e lia. Em 10 de agosto de 1858, morre sua amiga Ana Joaquina Cabral Viana, a quem dedica uma anotação no diário, a partir dela, pode-se afirmar que nesta época, Firmina lia ou apreciava, por exemplo, a obra de Almeida Garrett, pois registrou a seguinte citação: “rosa de amor ― rosa purpúrea e bela / Quem entre os goivos te esfolhou, da campa?!! C. [‘Camões’] por [Almeida] Garret.”
Estão registrados ainda em Álbum, cinco poemas: À Teresa de Jesus Cabral (22/07/1856); Um Anjo (1863), poema reproduzido em forma de prosa (XIMENES, 2017); À Minha Amiga Terezinha de Jesus (19/11/1865); Poema em memória de Adelsom (1883/4/5[?]); [Saudade] poema em memória de Guilhermina (1884/5?). Três textos literários: Uma lágrima sobre um túmulo (20/05/1853); Resumo da minha Vida (1863); e O que é a Vida (15/07/1873). Além de dois poemas oferecidos à Firmina: Uma Saudade – No Álbum da Exma. Snra. D. Maria Firmina dos Reis (1869?), por Raimundo Marcos Cordeiro; e por fim, A Mocidade (A mimnha ‘Mamaia’ M.F. Dos Reis), por Oton F. Sá.
Ao olharmos para as anotações realizadas nos períodos de produção e publicação de sua obra literária, observamos que na década de 1850, momento em que compõe e publica o romance Úrsula, há alguns registros significativos: provavelmente, um texto sobre a perda da mãe, em 1853; o registro do nascimento de Otávia, filha de sua amiga Guilhermina, escrava de sua tia Henriqueta e sua filha de criação, em 1858; e por fim, a morte da avó em 1859.
De setembro de 1860 a fevereiro de 1861, período de divulgação da venda do romance Úrsula, que teve início em 01 de agosto de 1860, curiosamente, as entradas do diário de Firmina revelam grande angústia, melancolia e insatisfação com a vida, contrariando nossas expectativas de que esse pudesse ter sido um período de realização pessoal da autora, proporcionado pela circulação de seu livro e de seu nome pela imprensa maranhense. Ao contrário, a escritora expressa em seus registros intenções suicidas e desejo da morte, como vemos confessadamente no seguinte trecho:
Não. Tentar contra os meus dias, seria um crime contra Deus e contra a sociedade; mas almejo a morte. Perdoai-me Deus de misericórdia! Mas a vida é-me assaz penosa, e eu mal posso suportá-la. O mundo é áspero e duro; mas não me queixo do mundo nem de pessoa alguma. […] meus desgostos são filhos de meus caprichos.
No ano de publicação do conto A Escrava, encontra-se essa interessante anotação: “Porfíria recebeu a liberdade a 17 do mesmo mês, e ano (Março, 1887)”. Essa anotação pode sugerir que Maria Firmina retirava do seu cotidiano mais imediato, muito daquilo que ela representava na forma literária. O conto A Escrava de 1887, discute a questão da alforria, da reescravização e da liberdade. A inclusão desse registro em seu diário, a nosso ver, leva-nos a concordar, por exemplo, com Luiza Lobo (1993, p.229) quando ela afirma que Mãe Susana, de Úrsula, assemelha-se a mãe Joana, de A Escrava, no sentido de nos transmitir a impressão de se tratarem de pessoas que Maria Firmina realmente conheceu. Ambas apresentam os mesmos traços de loucura devido ao sofrimento, só que mãe Susana recebe um tratamento épico por parte da autora. Assim, entendemos que a pesquisadora sugere a possibilidade de Maria Firmina ter colhido depoimentos para compor sua obra, além, também, das ideias anotadas em Álbum.
Os manuscritos desse diário foram entregues ao pesquisador Nascimento Morais Filho, por Leude Guimarães, filho de criação da escritora; foram transcritos por Jamil Jorge (poeta e dramaturgo), que foi assessorado por uma filha; e teve revisão de Euclides Siqueira (documentarista). Segundo esse pesquisador, depois da morte de Firmina, em 1917, muitos manuscritos seus foram roubados, isso teria ocorrido quando Leude Guimarães esteve em São Luís, de posse desse material. Morais Filho descreve assim o relato:
‘Quando vim para São Luís, depois de sua morte’ revelou-nos o Sr. Leude Guimarães, ‘trouxe muitos manuscritos seus. Eram cadernos com romances e poesias e um álbum onde havia muita coisa de sua vida e de nossa família. Mas os ladrões, um dia, entraram no quarto do hotel onde estava hospedado, arrombaram o baú, e levaram tudo o que nele havia. Só me deixaram, de recordação, os restos desse álbum, que encontrei pelo chão! (MORAIS FILHO, 1975; n.p.). Atualmente, a localização do material manuscrito de Firmina é desconhecida.
Além o diário de Firmina, o único diário feminino do século XIX publicado foi o de Helena Morley (1880– 1970). Esse diário foi publicado sob o título Minha vida de Menina (1893 – 1895), pela editora José Olympio, 1942, no Rio de Janeiro.
Para finalizar este texto para além desses aspectos mais analíticos, consideramos que a leitura de Álbum só nos faz concordar com o pesquisador e poeta Nascimento Morais Filho, quando ele diz ser uma “felicidade rara ler o livro dos ‘sentimentos íntimos’ de uma mulher… E do século XIX!… E também de uma escritora!…”.
Um poema de Álbum
À MINHA AMIGA TEREZINHA DE JESUS
Pago-te em verso o que te devo em ouro
Beijar-te… ouvir-te a voz divina e pura
Mimosa criatura ― anjo de amor!
É gozo que extasia a minha alma
Como oásis na calma ― em longo error.
Mimo celeste que vieste ao mundo,
Ledo, jucundo [jovial] ― sedutor e santo!
Teu riso anima melindrosa fada
Por Deus mandada pra estancar meu pranto.
Não vieste, bela, a me inspirar poesia
Nessa harmonia de beleza, e canto?
Não sentes a alma que teu peito aninha,
Que a alma minha […] tributa […]?
Sabes, tu sabes que me[u] peito apuro
No afeto puro ― que te hei votado:
Que sonho extremo para ti ― ledices
Que de meiguices eu te hei cercado.
Mulher, encanto desta terra amena,
Visão serena ― ao despertar do dia,
Que em branca nuvem, com roupagem d’ouro
Desce; ― tesouro ― de imortal poesia.
Anjo que ao sopro matinal desprende
O voo: a [e] acende ― do turíb’lo o incenso
Que ondula brando derramando aroma
E ao trono assoma ― de Jeová incenso [?].
Ê meu empenho compreender teus cantos,
Que encerram encantos ― de celeste amor.
Sonho os mistérios devassar dos Céus
Anjo de Deus ― no teu mimoso odor.
Guimarães, 19 de novembro de 1865
***
Responsável pela descoberta do Álbum: José Nascimento Morais Filho, pesquisador, poeta e escritor maranhense.
Primeira publicação: Maria Firmina ─ Fragmentos de uma Vida, José Nascimento Morais Filho, Governo do Estado do Maranhão, 1975.
Transcrição do Álbum: poeta e dramaturgo Jamil Jorge, assessorado pela filha, a pedido de José Nascimento Morais Filho.
Revisão: documentarista Euclides Siqueira.
Referências Bibliográficas
DIOGO, Luciana Martins. Escrevendo para si, reinventando-se para o/a outro/a: a memória da criação e os testemunhos da invenção literária nos diários e cartas de Maria Firmina dos Reis, Ruth Guimarães, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo. Projeto de Doutorado, 2018.
DIOGO, Luciana Martins. Firmina por Firmina: interpretando seus álbuns e diários, p.48-56. In: Da sujeição à subjetivação: a literatura como espaço de construção da subjetividade, os casos das obras “Úrsula” e “A Escrava” de Maria Firmina dos Reis. 220 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Brasileiros) – Instituto de Estudos Brasileiros. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.
LOBO, Luiza. Crítica sem Juízo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.
MORAIS FILHO, Nascimento (Org.). Maria Firmina: fragmentos de uma vida. São Luiz: Comissão organizadora das comemorações de sesquicentenário de nascimento de Maria Firmina dos Reis, 1975.
MUZART, Zahidé. De navegar e Navegantes in: MIGNOT, Ana Chrystina Venancio; BASTOS, Maria Helena Camara; CUNHA, Maria Teresa Santos (organizadoras). Refúgios do eu: educação, história, escrita autobiográfica. Florianópolis: Editora Mulheres, 2000; p.183. Trabalho apresentado VI Congresso Nacional da Abralic, Florianópolis, 18 a 22 de agosto de 1998.
XIMENES, Sérgio Barcellos. O ‘Álbum’ (o diário) de Maria Firmina dos Reis. In: A Arte Literária | Blog sobre a história da literatura e a literatura em geral – 06/12/2017.
(*) Luciana Diogo, Socióloga e pesquisadora. Doutoranda em Literatura Brasileira (FFLCH/USP). Bacharela e Licenciada em Ciências Sociais (FFLCH/USP), com mestrado em Estudos Brasileiros (IEB/USP) sobre a obra de Maria Firmina dos Reis.
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